A Atenção
José Manuel dos Santos
Conferência feita na primeira reunião [Portugal entre Patrimónios], Museu Nacional de Arte Contemporânea | 30 de outubro de 2018
Em economia e na teoria que a sistematiza e às vezes fetichiza, aos factores de produção ou recursos clássicos – a terra, o trabalho e o capital -, o economista inglês Alfred Marshall, na passagem do século XIX para o século XX, acrescentou a organização, entendida como uma actividade social que associa, estrutura, coordena e hierarquiza meios variados e complexos para alcançar objectivos definidos e desejados. Dito na linguagem da economia: esses meios são insumos que produzem o serviço ou o produto final.
Juntando-se a estes – terra, trabalho, capital, organização – a atenção aparece actualmente como um novo factor de produção e de criação de valor. Os teóricos e, com eles, os gurus anglo-saxónicos da gestão têm insistindo nisso, fazendo deste tema um dos leitmotive da sua doutrinação e das acções de formação que a praticam. Essa formação constitui, sem que muita gente se dê conta disso, um lugar central de criação e de transmissão de ideologia, num tempo, o nosso, dito ingenuamente sem ela.
Yves Citton, um pensador suíço de uma grande originalidade e interesse, professor em prestigiadas universidades europeias e americanas, tem dedicado à atenção a sua atenção mais fiel. Citton dirige um seminário sobre as Artes da Atenção na Época do Capitalismo Digital, é autor do livro Pour une ecologie de l’ attention e é o coordenador da obra colectiva L’ économie de l’ attention. Nouvel horizon du capitalisme?
Esta obra propõe-se responder a estas questões: “Há duas décadas, ouve dizer-se que uma «nova economia» está a ponto de suplantar os antigos modos de troca dos bens materiais – uma economia na qual a atenção constituirá a primeira raridade e a mais preciosa fonte de valor. Como se apresenta essa economia da atenção? Que novas ferramentas são necessárias para compreender os seus mecanismos? Que devemos temer e que devemos esperar? Das neurociências à sociologia, da criação cibernética à filosofia ética, uma grande diversidade de disciplinas é convocada aqui para esclarecer a economia da atenção, a partir de múltiplas perspectivas críticas. Devemos sublinhar que é hoje indispensável pensar o destino das nossas economias em termos de atenção – mas que seria calamitoso deixar apenas as lógicas capitalistas reconfigurarem os nossos regimes de atenção. Remédio para o produtivismo fanático que esgota os nossos recursos materiais, ou sintoma da colonização que submete os nossos espíritos ao controlo do capital? A economia da atenção não se situa apenas no cruzamento das disciplinas – ela está sobretudo no cruzamento dos caminhos que traçarão o nosso futuro”.
Numa entrevista ao CNRS Le Journal ( “L’attention,un bien précieux”), a uma pergunta sobre o que é a economia da atenção, Yves Citton respondeu: “Esta expressão começou a ser utilizada em 1996. A sua origem remonta a um artigo do economista e sociólogo americano Herbert Simon, publicado em 1971, que opõe as sociedades do passado, caracterizadas como “pobres em informação”, às nossas sociedades actuais, “ricas em informação”. A diferença consiste em que nós todos temos doravante acesso a uma quantidade de informações pertinentes (ou seja, necessárias para as nossas práticas) muito superiores às capacidades de atenção de que dispomos para delas tomar conhecimento. Convém, por isso, pôr no primeiro plano das nossas análises uma nova raridade: a atenção. Esta raridade situa-se do lado da recepção dos bens culturais e não somente do lado da sua produção, agora que a economia tradicional se define pela optimização da produção de bens a partir de recursos limitados. Toda a gente sabe que a principal dificuldade de hoje não é tanto a de produzir um filme, um livro ou um site Web como de atrair a atenção de um público submergido em propostas, frequentemente gratuitas, cada uma mais atractiva do que a outra. (…) Mas não basta dizer que a atenção é um recurso raro dos nossos dias. Isso foi um pouco verdade em todos os tempos. A retórica, desenvolvida desde a antiguidade, propondo aos oradores métodos para captar e manter a atenção dos auditores prontos a deixarem-se distrair, é sem dúvida a forma mais antiga da economia da atenção. Longe de começar em 1996, com o avanço da internet, é entre 1870 e 1920 que se situa a verdadeira emergência destas questões. Um sociólogo como Gabriel Tarde (1843-1904) entendeu já então muito bem que a industrialização provocava uma superprodução de mercadorias, em que as questões da atenção (que a publicidade começava a estruturar) jogam um papel central na economia. Bem antes disso, os livreiros e os directores de teatro batiam-se desde há alguns séculos para atrair a atenção dos leitores e dos espectadores numa situação de oferta pletórica. Mas se a economia da atenção existiu sempre, ele tende a tornar-se cada vez mais hegemónica, ao ponto de dominar as esferas da produção. Assiste-se à emergência de lógicas económicas que dão, cada vez mais, maior importância ao polo recepção-consumo do que ao da produção. Se há qualquer coisa de novo, são as acelerações induzidas pela difusão maciça do desenvolvimento tecnológico tais como o computador pessoal, a internet ou os algoritmos dos motores de busca. (…) Há que compreender simultaneamente por que razão devemos repensar a economia em termos de atenção e como é insuficiente reduzir a atenção às questões económicas. Alargando o campo do questionamento, somos conduzidos a medir melhor os laços íntimos entre o facto de ser «atento» [passivo] e o de ser «atencioso» [activo], ou a ultrapassar a oposição simplista entre atenção e distração, concentração e dispersão. O que mostra estes esclarecimentos cruzados é que a questão da atenção está no coração dos nossos conflitos sociais, já que os nossos regimes de atenção estão intrinsecamente ligados aos nossos regimes de valorização, segundo aquilo a que chamo um «círculo incestuoso»: eu dou atenção àquilo que aprendi a valorizar e valorizo aquilo a que aprendi a dar atenção. Esta dinâmica circular entre atenção e valorização está no centro de múltiplas «crises» que denunciamos na nossa época. Por exemplo, a crise financeira de 2008 é devida, como a maior parte das bolhas especulativas que se sucederam desde o século XVII, ao alinhamento das atenções (e das inatenções) sobre certos indicadores em vez de outros, arrastando aquilo que se chama um fenómeno de “cegueira de atenção”: concentra-se de tal maneira a atenção sobre um fenómeno preciso que se falha qualquer coisa que, no entanto, nos devia saltar aos olhos. De uma maneira mais geral, cada vez que se estabelece um procedimento de avaliação (de administração pública, de hospital, de escola, etc.), este procedimento contribui para produzir activamente os valores que pretendia apenas observar objectivamente, suscitando círculos viciosos que desorientam as nossas bússolas”. E Yves Citton lembra que as bolhas especulativas não existem apenas no campo financeiro. Existem também no campo científico, cultural e artístico. E destinam-se a fabricar, falsificar, afirmar, impor valores, modas, pessoas, visibilidades, interesses, para atrair a atenção e tudo o que ela concede.
Já se fala de guerra pela conquista da atenção. Escreveu – e isto é um sintoma – uma conselheira especializada na ocupação de tempo: “ Mails, sites, redes sociais, mensagens, imagens, informação superabundante, já não sabemos ao que dar atenção. Com armas de distração maciça, tudo parece feito para captar a nossa atenção e para nos distrair do nosso «objecto de atenção». De tal ordem que, solicitada de todos os lados, a nossa atenção vale ouro. Publicitários, media, redes sociais disputam-na e arrebatam-na”.
Como diz Yves Citton, “a atenção é uma interacção”. Vivemos, pois, numa época em que, consciente ou inconscientemente, a atenção, com a procura premente dela e daquilo que a gera, é um acelerador de partículas da vida individual e colectiva.
Dos impulsos narcísicos aos ímpetos competitivos, dos fundos dionisíacos do inconsciente aos jogos ilusórios da economia, da pesada omnipresença das redes sociais às seduções ligeiras da publicidade, das notícias falsas às famas fictícias, das obras de arte exibicionistas aos populismos políticos, a atençãoé o grande motor de busca de um tempo sem silêncio. A atenção é, dele, simultaneamente a sonda e o sensor. E ainda o algoz e a vítima.
É claro que, se este é o fio com que se tece o tecido do nosso tempo, é também nítido que os efeitos perversos desta vontade de atenção e os danos colaterais da guerra por a obter se apresentam todos os dias à nossa frente. Perante isso e por isso, a uma economia da atenção deve responder uma ecologia da atenção.
De entre esses efeitos, salta à vista, por exemplo, o sensacionalismo que se apoderou de tudo – da comunicação social (em permanente estado de sítio) à informação meteorológica (qualquer descida normal de temperatura é anunciada com “vaga de frio siberiano”); dos lançamentos editoriais (com as vedetas da televisão a assinarem livros inverosímeis) às estratégias de programação dos museus; da festivalização da cultura (bienais, prémios, certificações, concursos, feiras, festivais, certames, galas, vernissages, finissages, lançamentos, tributos) à gramática de superlativos e advérbios de modo (nada há que não seja “inédito”, “novo”, “mostrado pela primeira vez”, “o máximo”, “ o maior”, “recorde absoluto”, “supergiro”, “óptimo”, “de excelência”, “maravilhoso”, “fabuloso”, e que não tenha corrido “lindamente”); das mais estentóricas proclamações políticas (em que só os “sound bites” são notícia) às histerias do velho ou do novo puritanismo; sucessão frenética de “eventos” à imbecilização da publicidade, da espectacularização da justiça à encenação da tragédia, do “tudo é humor” à supressão das fronteiras entre o público e o privado.
Tudo é espectacular e tudo é espectáculo ! Já Guy Debord, esse profeta de profecias perigosamente presentes, tinha dito em 1967: “Toda a vida das sociedades em que dominam as condições modernas de produção, aparece com uma imensa acumulação de espectáculos”. Ou: “ O espectáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social mediada por imagens”. E: “ A cultura tornada integralmente mercadoria, deve também tornar-se a mercadoria vedeta da sociedade do espectáculo”. Ou: “ Os espectadores não encontram o que desejam, desejam o que encontram” “E ainda: “ Num mundo realmente às avessas, o verdadeiro é um momento do falso”.
Todos fazemos tudo para que olhem para nós alguns instantes. Os quinze minutos da fama de Andy Warhol são hoje quinze segundos. Mas para os ter exclama-se e gesticula-se, dá-se e rouba-se, mata-se e morre-se!
Este sensacionalismo não se abateu apenas sobre as formas de comunicação, mas também sobre os conteúdos do que se comunica. A comunicação determina, obriga, condiciona aquilo que se comunica – ideias, obras, espectáculos, acontecimentos, mensagens, formatos.
A comunicação e o consumo ligam-se por um cordão umbilical de interesses, códigos, sentidos e propósitos. Falam a mesma língua. Fazem as mesmas contas.
Na proporção inversa da sofisticação e da aceleração dos meios tecnológicos, as mensagens que esses meios transmitem são cada vez mais retardadas, primárias, grosseiras, simplistas e infantis. E nem a sua estetização disfarça essa mediocridade fundadora. Mais do que no “Fausto”, de Goethe, o “conhecimento” é aqui um duplo pacto com o diabo e com a servidão que ele impõe.
Temos falado da atenção, da sua economia e da sua ecologia. Do seu valor e do seu perigo. Da sua fixidez e da sua fluidez. Da sua necessidade e da sua escassez. Falámos da atenção que se dá e da que se recebe. Da que se vende e da que se compra. Da que se rouba e da que nos é roubada.
Se eu não fosse eu e vocês não fossem vocês, talvez pudéssemos ficar por qui. Mas, neste lugar e neste fórum, falar disso era falar de menos. Por isso, vou falar um pouco mais.
Este é também um dispositivo retórico para fazer com que a vossa atenção final não se perca, quando o tempo vai longo e a matéria é larga.
A história da cultura, das suas realizações às suas idealizações, dos seus factos aos seus imaginários, das suas vitórias aos seus fracassos, é atravessada pela atenção.
Do que se escreve ao que se compõe, do que se pinta ao que se esculpe, do que se fotografa ao que se filma, do que se conserva ao que se expõe, é mesmo possível fazemos esta história a partir da palavra atenção e da sua etimologia – attentio, de attendere, que significa «virar o espírito para», «aplicação», «esforço», «cuidado». Com ela como fio de Ariadne, podemos percorrer o longo labirinto dos tempos e dos espaços da cultura.
Felizes aqueles que dão à sua atenção a coincidência da mais alta liberdade com a mais funda necessidade. Essa é a grande respiração do seu ioga criador. Esses são como o arqueiro de que fala Eugen Herrigel, no seu reconhecido livro “ Zen e a Arte do Tiro com Arco”, que põe o alvo a fazer-lhe pontaria.
A atenção é, nos seus mais altos graus, a procura e a espera do kairós – o momento oportuno e supremo, ou o tempo certo e qualitativo – no (ou sobre o) chronos – o tempo linear, sequencial e quantitativo. Dito de outra maneira: a atenção é então a procura do tempo dos deuses (a eternidade) no tempo dos homens (a mortalidade). E não esquecemos que a prece é uma atenção que quer ser atendida.
O criador – de arte, de literatura, de ciência – é aquele que procura o tempo da criação. Já se disse que é, para isso, um observador atento. Desta observação atenta ou desta atençãoobservadora, ele tira o que quer, criando-o. É aí que a nossa atenção se encontra com a dele. É aí que a nossa atenção acrescenta a dele. É aí que a nos prolongamos na criação dele.
Escolho, do traçado desse labirinto de criadores, obras e tempos, alguns pontos por onde passa o fio da atenção. E este caminho poderia fazer-se com paragens em muito mais lugares-exemplos.
Em Homero, a atenção tem consigo os cinco sentidos. Ela é uma lança e um escudo. Logo no início da “Odisseia”, canta-se: “ Fala-me, Musa, do homem astuto que tanto vagueou,/ depois que de Troia destruiu a cidadela sagrada. / Muitos foram os povos cujas cidades observou…” E no canto XIX, ouve-se: “ Respondendo assim, falou o astucioso Ulisses: “ Ama, porque serás tu a nomeá-las? Não há necessidade. Eu próprio quero observá-las, para conhecer cada uma.”. Em Ulisses, a astúcia é uma observação e uma atenção. E a falha delas pode ser a perdição e a morte.
No centro d’ “ As Mil e Uma Noites”, está a atenção do rei Shariar que, em cada noite, Xerazade consegue atrair com as suas histórias sucessivas e que a salvam de morrer em cada amanhecer. Nesse jogo mortal, a atenção da que conta à atenção do que ouve é como a adaga que apara o golpe da espada.
A “Divina Comédia”, de Dante, é uma geografia de atenção. E um campo magnético: Virgílio e Beatriz são ímanes de atenção da narrativa. É ainda uma simbologia de atenção. Tudo é cifra que se decifra com a intensidade da atenção, venda que se desvenda com a intenção da atenção. No poema, a atenção garante a concisão do mundo, a conclusão da viagem e a coesão da realidade. Em Dante, a atenção à palavra é uma dicção.
Já no tempo de Shakespeare, a unidade estava quebrada e a realidade rompeu-se. O humano foi inventado, como disse Harold Bloom. Aí, a atenção é a condição para ouvir a voz na confusão das vozes, para olhar a vida no tumulto das vidas, para seguir o gesto na desordem dos gestos. Aí, a palavra é uma atenção ao mesmo tempo dividida e multiplicada.
Na pintura de Andrea Mantegna, há uma atenção solene à gravidade da vida, ao respirar das pessoas e das coisas. Essa atenção é uma telepatia que se acende para decifrar um enigma, adivinhar um murmúrio, prever um movimento, prevenir uma cilada, predestinar um sinal.
Maquiavel escreveu o seu perverso e lúcido livro para dizer ao Príncipe aquilo a que ele devia “prestar atenção” (capítulo 17). “Governar bem” é prestar atenção a si-mesmo e aos outros, aos amigos e aos inimigos, aos grandes e aos pequenos, ao ser e ao parecer, à mentira e à verdade, à crueldade e à piedade, ao amor e ao temor, à fidelidade e à traição, aos meios e aos fins, ao poder e à reputação, à violência e à prudência, à ambição e à astúcia, ao movimento e à estagnação, à força e à fraqueza, à virtude e à fortuna, à guerra e à paz. N’ “ O Príncipe”, a política é uma atenção armada contra os leões da luz e os lobos da sombra.
No “Dom Quixote”, de Cervantes, há o confronto de duas atenções – a de Dom Quixote e a de Sancho Pança -, que falam e agem uma com a outra. Uma olha para cima, outra olha para baixo. Uma distancia a proximidade, outra aproxima a distância. Uma olha para dentro, outra olha para fora. Uma vê o que imagina, a outra imagina o que vê.
Haveria também de acontecer mais tarde com Johann Sebastian Bach, mestre de uma atenta e altiva matemática musical, grande vivo velado como um morto durante meio século e desvelado, revelado de novo, por Mendelssohn.
Durante muito mais tempo ainda, a atenção à obra de Caravaggio foi um intervalo vazio entre duas atenções cheias. Na sua pintura de intensidades claro-escuras, densidades dramáticas, coesões cromáticas, sonhos selvagens e sedições sexuais, as nódoas na carne, o sujo nas unhas e as sombras no sangue das figuras sagradas são uma atenção ao mais literal dos léxicos litúrgicos. Por isso, essa atenção tem o nome de uma fidedignidade fundamental e de uma fervorosa fidelidade do céu que está em cima à terra que está em baixo.
Da pintura de George de la Tour podemos dizer o que Sophia de Mello Breyner Andresen disse: “ E a luz da vela – como em certos quadros – / Tornando tudo atento.”
Vermeer é um grande pintor da atenção. A sua pintura dá atenção a todos os esses do mundo: ao silêncio, ao segredo, à solidão, à serenidade, à sedução, à sombra, ao sol, ao sublime, ao sensual, ao suspenso, ao suspiro, ao sussurro, ao sobressalto, ao sorriso, ao sossego, à sorte. Naqueles interiores holandeses, a voz da atenção canta a sua ária mais absorta e assombrada.
Vinda de Aristóteles, Lucrécio, Santo Agostinho e Jean Buridan, a atenção chega, no século XVII, a Descartes, Espinosa, Malebranche, Leibniz e Hobbes. Neles, e com as novas ideias sobre a ciência e a subjectividade, a atenção torna-se a mnemónica de uma mecânica e de uma matemática do mundo.
Em Beethoven, sobretudo nos andamentos lentos, a atenção ouve-se a si-mesma. Em Chopin, diz-se a si-mesma. Em Mahler, diz-nos a nós e por isso distorce-se, desfoca-se, desvia-se, deforma-se, torna-se dissonante.
Para Flaubert, a atenção era a perseguição da forma, a investigação da palavra, a invenção do estilo, a punição da perfeição. Estar atento era estar vigilante. Antes de Sartre, que sobre ele escreveu caudalosamente (“L’Idiot de la famille”), o autor de Madame Bovary sabia o que Sartre soube depois: “ A facilidade é o talento que se vira contra nós”.
A atenção de Eça de Queiroz era um grafito no muro do mundo. Tinha o dom de fazer-nos ver e ouvir o que via e ouvia. Era subtil, sensível, sensual, sedutora, sinuosa, sagaz, sofisticada, satírica, secreta, severa, sádica. E, nas suas personagens, essa atenção proliferou com a profusão da aranha. É móvel, mundana, libertina, lúbrica, lírica, bisbilhoteira, irónica, perversa. Serve para seduzir (Basílio, Ega), amar (Carlos da Maia e Maria Eduarda), acusar (Condessa de Gouvarinho), dissimular (Padre Amaro), difamar (Dâmaso Salcede), mentir (Teodorico Raposo), descobrir (Dona Maria do Patrocínio – a Titi), intrigar (Conde de Abranhos), corromper (Palma Cavalão), chantagear (Juliana), declamar (Alencar), ambicionar (Artur Curvelo), admirar (Jacinto), adoecer (Luísa), morrer (Afonso da Maia).
Nos pintores Impressionistas, a atenção à luz, com as suas variedades, variantes e variações, modulações, matizes e mudanças, faz da luz um rio de Heraclito, no qual ninguém se pode banhar duas vezes.
Fechado no seu quarto e no meio de asfixias, fumigações e suores, Marcel Proust fitou o tudo do todo com a atenção final dos que não morrem sem dar ao olhar a penumbra branca do fantasma que lhes sucede no trono do mundo.
“Este trabalho do artista, de procurar detectar algo de diferente debaixo da matéria, debaixo da experiência, debaixo das palavras, é exactamente o trabalho inverso daquele que, a cada minuto quando vivemos alheados de nós mesmos, o amor-próprio, a paixão, a inteligência, e também o hábito, realizam em nós, quando amontoam por cima das nossas impressões verdadeiras, para no-las ocultarem por completo, as nomenclaturas, os objectivos práticos a que falsamente chamamos vida”, escreve ele, numa das sequências mais vertiginosamente inteligentes do seu livro. (“Em Busca do Tempo Perdido”, vol. 7, “O Tempo Reencontrado”).
Toda a grande obra de Proust faz da atenção uma corrente alternada entre o microscópico e o telescópico, perscrutando os nossos mundos no mundo e os mundos do mundo em nós. Há uma ligação entre atenção e memória que esta obra confirma, corrige e subverte. Podemos assim falar de atenção involuntária, como ele falou de memória involuntária.
A atenção em Virginia Woolf é o vaivém da nave sobre as vagas violentas, ora velozes, ora vagarosas, da vida. Aquela que disse que o movimento e a mudança são os fundamentos do nosso ser fez da sua atenção uma contrassenha móvel e minuciosa para responder à senha movediça do mundo de fora e também do mundo de dentro.
De Kafka, falamos da atenção nervosa como um sismógrafo, da mão meticulosa transportando os pesos das balanças de todos os poderes, do conhecimento exausto dos pormenores diminutos e assustadores, da asfixiante e pálida claustrofobia da alma, das razões absurdas da razão, da religiosidade do mal, da inverosimilhança do real, do riso sacudido pelo trágico, da observação tão intensa que cega, do esquecimento voluntário da memória, da serenidade seca do cérebro burocrático, do corpo que nos torna animais e vegetais, da selvajaria da lentidão.
Kafka é o Sísifo de todas as pedras, de todas as rotinas e de todos os cansaços. É o Tântalo de todas as sedes que não se saciam e de todas as esperanças que se ausentam. Porque – disse ele – a esperança existe, mas não é para nós.
Nos romances, nos contos, nas cartas, nos diários, a atenção é o medo de se ser o que se é e a vergonha de se não ser o que se não é. Esse medo e essa vergonha crescem como ervas súbitas e silenciosas, de um verde sujo, sombrio e sáfaro. Aí, as entradas não têm saídas e os caminhos vão dar a um lugar ou inacessível ou inaceitável.
Tudo nesses livros pequenos e grandiosos são armadilhas – e a atenção é a maior delas. Avisa-nos de que vamos ficar presos. Avisa-nos de que as mais perigosas das armadilhas estão em nós. Avisa-nos de que a mais infalível das armadilhas somos nós.
Em Fernando Pessoa, a atenção multiplica-se e faz contas, dando, contudo, mais atenção à operação do que ao resultado dela. O ortónimo e cada um dos seus heterónimos estão na sua atenção com uma atenção diferente.
A atenção de Alberto Caeiro é ao mundo ( “A espantosa realidade das coisas/ É a minha descoberta de todos os dias”). A de Ricardo Reis, ao tempo ( “Assim, teus dias vê, e se te vires/ Passar, como a outrem, cala”) . A de Álvaro de Campos, ao eu ( “Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada./ À parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo”) A de Fernando Pessoa, à morte ( “ A morte chega cedo, / Pois breve é toda vida”). A de Bernardo Soares, à vida (“ Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora”).
Durante dias e dias e mais dias, a atenção de Marie Curie fixou-se, com perigo, precisão e ânsia, nas toneladas da pecheblenda, até que a luz do radio iluminasse o seu olhar cansado e as suas mãos secas.
Sigmund Freud, conhecedor da obra “Psicologia da Atenção”, de Ribot“, avançou e distinguiu o “pensamento banal” e o “pensamento observante”. E recomendava ao analista que escuta o que fala uma “atenção flutuante”. Essa atenção é a do patinador sobre o lago gelado pronto a quebrar-se com o calor do atrito.
Carl Gustav Jung estudou as várias lentes da atenção e as sirenes interiores do alerta. Para ele, a atenção é uma iluminação que, mais do que demandar as praias luminosas, deve tornar visíveis as grutas obscuras.
Albert Einstein disse que a sua inteligência era apenas a de se concentrar atentamente nos problemas mais tempo do que os outros. E assim o universo se fez dele.
Santo Agostinho opõe, no Livro X das Confissões, a attentio à curiositas, a concupiscência dos olhos. Picasso não é um pintor da atenção. Por isso, disse: “Não procuro, encontro”. Este Casanova da arte é um pintor da concupiscência do olhar, dessa curiosidade célere e dispersa do corpo.
Os pintores Malevich e Mondrian fizeram da atenção um kamasutra geométrico. Para Magritte, a atenção é um sagaz, subtil e singular silogismo visual não-aristotélico. Edward Hopper é o pintor da atenção ao cavalo parado da solidão.
Em Andy Warhol, a atenção tem todos os erres: repetição, reiteração, replicação, reprodução, renovação. E, às vezes, tem o dê da diferença.
Hitchcock e Bergman são dois realizadores da atenção. Num, a atenção mata. Noutro, mata-se.
Luchino Visconti leu na atenção ao passado o nome de uma decadência mais majestosa e musical do que a do presente. Mas quis fazer dela uma miragem invertida do futuro. A atenção de Fellini é sósia da imaginação e do salto que faz dançar o pensamento no circo do corpo. Em Pasolini, a atenção à morte é a atracção da serpente pelo encantador que diz a palavra não.
Fotografar é atirar ao alvo uma seta de atenção. Das fotografias da americana Diane Arbus, diz Susan Sontag: “ A autoridade das fotografias de Arbus deriva do contraste entre os seus temas dilacerantes e a atenção objectiva e serena que revelam. Esta capacidade de atenção – a atenção do fotógrafo e a atenção do personagem no momento de ser fotografado – cria o teatro moral dos retratos contemplativos e directos de Arbus.” ( “Ensaios sobre Fotografia”)
E Sontag lembra ainda: “Neste século, a geração mais velha de fotógrafos descreveu a fotografia como um esforço heróico de atenção, uma disciplina ascética, uma receptividade mística para com o mundo que requer que o fotógrafo seja capaz de atravessar uma nuvem de desconhecimento”. ( ibidem)
Numa conversa em que fala do “paradoxo do escritor”, esse que o leva a ser ele-mesmo e, ao mesmo tempo, a sair de si-mesmo, Marguerite Yourcenar diz: “O primeiro dever do escritor parece-me ser, antes de tudo, a atenção. Uma muita grande atenção ao que sente, ao que experimenta. Uma atenção que diria quase médica, científica, para não se enganar, para não se confundir a si-próprio, e uma imensa atenção ao universo que o rodeia. Nos escritos dos filósofos do Taoísmo, que parecem ter chegado mais longe do que outros ao sentido da realidade, há uma espécie de provérbio que diz: “ Governar um grande império é o mesmo que fritar um pequeno peixe”. Quer isto dizer que os dois necessitam de uma atenção completa, um cuidado atento daquele que o faz. Eu diria a mesma coisa para um grande livro. Escrever um grande livro é como fritar um prato de peixe ou fazer um guisado de legumes, é pôr toda a atenção, todo o talento, toda a boa vontade de que se é capaz numa só acção. Creio que isso é, em matéria de literatura e de arte, a base de tudo. A atenção é uma qualidade muito rara. Nos trabalhos de psicologia oriental, que foram muito longe no estudo das relações do homem consigo, a primeira virtude aconselhada é a vydia, a atenção. Ser atento ao que se faz, ser atento aos movimentos dos músculos, ao nosso olhar, ver exactamente o que se passa em nós e fora de nós”. Depois, a autora de “Memórias de Adriano” cita de um texto tântrico de Cachemira: “Que o espírito ocupado com uma coisa não a abandone demasiado depressa para se dirigir para outra”. E nota ela que, como nos desenhos de Rembrandt, as linhas da vida não são rígidas: têm margens, variações, passagens, imprecisões, esbatimentos, raiados, mudanças imperceptíveis. E adverte: “As pessoas que pensam convencionalmente não vêem esta margem. Saltam de um assunto a outro sem pensarem na aura, na margem que há em cada sensação ”. Continuando a citar o texto tântrico: “ Na ansiedade, no terror, no espirro (Montaigne diz algo parecido), quando estamos suspensos sobre um precipício, quando fugimos de um perigo, quando sentimos uma viva curiosidade, no momento em que despertamos ou saciamos a fome, a existência manifesta-se”, Yourcenar comenta: “ De novo estamos perante a passagem de uma sensação a outra, uma coisa tão importante que o escritor convencional falha sempre, sendo o grande escritor especialmente sensível a essa espécie de mobilidade do detalhe.” Essa mobilidade requer uma das mais exigentes formas de atenção.
Na voz de Amália Rodrigues, há uma atenção atirada à noite dos corpos e das palavras. Por um túnel de sombras e de sons chega-se àquele lugar onde tudo brilha, tal o ouro quente na mina mais funda e mais fria.
Na arquitectura, a atenção é um material de construção. Em Álvaro Siza Vieira, há uma arquitectura de hiperatenção. A sua recta é uma curva tensa de atenção, esticada para observar. Esta obra é como a bata branca que sai da ambulância para acudir ao desastre visual do mundo.
Em Sophia de Mello Breyner Andresen, a atenção é poesia e é poética. É mesmo uma moral. Num poema, diz: “O meu interior é uma atenção voltada para fora/ O meu viver escuta”. E, em “Arte Poética IV”, escreve: “ Fazer versos é estar atento e o poeta é um escutador. O meu esforço é para conseguir ouvir o «poema todo» e não apenas um fragmento. Para ouvir o «poema todo» é necessário que a atenção não se quebre ou atenue e que eu própria não intervenha”. E é uma moral, porque diz, em “Arte Poética III”: “Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda de uma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver o fenómeno todo. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor. E é por isso que a poesia é uma moral”.
Sophia ergueu a voz dos poemas para os dar em admiração a Maria Helena Vieira da Silva, essa grande pintora dos labirintos lúcidos, das minúcias milimétricas, da atenção pitagórica ( “ Exauridos pelo labirinto caminhamos /Na minúcia da busca na atenção da busca”). Num deles, define a mais pura e potente atenção visual: “Atenta antena/ Athena/ De olhos de coruja/ Na obscura noite lúcida”.
Este é o tempo da atenção desatenta e da desatenção atenta. É o tempo em que os contrários se unem e se destroem para se reconstruírem.
O filósofo e psicólogo William James, irmão de Henry James, escritor de uma atenção perversamente atenta, disse: “ A atenção é a tomada de posse pelo espírito, sob uma forma clara e viva, de um objecto ou de uma sucessão de pensamentos entre aqueles que parecem possíveis. Ela implica a retirada de certos objectos de modo a tratar mais eficazmente os outros”. É por isso que a atenção é sempre escolha e exclusão, potência e perseguição, perda e posse, recuperação e reconstituição, renovação e restituição. É por isso que a atenção é uma corda tensa entre patrimónios: o que a utopia ergue e o que a entropia dissipa.
A atençãoé circular e incerta como o amor. A atenção que nós damos atrai a atençãoque nos dão. Como no amor, isso às vezes torna-se, ou revela-se, desencontro, recusa, adiamento, promessa, esperança. É esse o momento em que o nosso olhar, para não cegar, se vira para outro lado. A atenção é, então, uma atenção que procura, que espera, que acredita, que se suspende, que se surpreende. Nesse momento, temos consciência de que somos, no grande jogo do mundo, como no quadro de Cézanne, um dos atentos jogadores. Só não sabemos se somos o que ganha ou o que perde.